Publicado em: Musicoterapia

 

“O significado mais importante na musicoterapia é que ela trabalha com a matéria música, altamente expressiva, inerente ao ser humano, capaz de produzir emoções, reações, formas de sentir, de inteligência sensível e especulativa. […] A música, sendo um símbolo consciente e inconsciente, é facilitadora da relação, porque além do verbal, ela manipula e lida com a expressão não verbal. O princípio do “fazer musical”, tocar, cantar, dançar, ouvir, é muitas vezes o princípio do prazer, sendo este o elo forte que se estabelece entre paciente e musicoterapeuta, que vai além da comunicação através da palavra, atingindo a comunicação do sentir e da expressão individual “

Cecilia Conde – 1989

 


Cecília Conde: a visionária.

Lia Rejane Mendes Barcellos

O ano de 1961 terminava e eu finalizara meus estudos de Piano. Deveria voltar para a minha terra, o Rio Grande do Sul (Bagé). Mas, decidi fazer composição, contraponto e fuga e continuar no Rio. Mas, também me interessava o Curso de Especialização em Educação Musical. E essa decisão me levou ao Conservatório Brasileiro de Música (CBM) e à Cecilia Conde. E, depois de conhecê-la, ninguém ficava incólume à sua inteligência, audácia, perspicácia, força, inquietação e muitos outros adjetivos que poderiam ser utilizados para defini-la! 

Decidi ficar no Curso, que foi o início da minha admiração por ela, e mais do que isso, de uma amizade que sempre me impulsionava para seguir adiante e desafiava as minhas possibilidades. Ela era ainda muito jovem, e já era um exemplo. Terminei o curso em 1963, mas ainda deveria terminar composição. Assim que acabei fui embora para S. Paulo. Mas, a semente da Educação Musical foi comigo, e a imagem da força de Cecília me acompanhou. Em S. Paulo trabalhei com Educação Especial porque já tínhamos feito estágios nessa área, no “Curso da Cecília” e, no primeiro ano, também da professora Liddy Mignone!. 

Voltei para o Rio em 1970 e continuei a estudar piano com o professor Arnaldo Estrella, que dava aulas na Mesbla, numa sala contígua ao salão de vendas de instrumentos musicais. E, num desses dias de aula vi, afixada numa das paredes, uma pequena folha de papel que anunciava a abertura do Curso de Musicoterapia. 

Assim, voltei ao CBM e reencontrei Cecília, acompanhada por Doris Hoyer de Carvalho e Gabrielle Souza e Silva (Gaby), que haviam também cursado a Especialização em Educação Musical na mesma turma da qual eu participara. 

Nesse momento de criação do Curso de Musicoterapia, Doris já trabalhava na Sociedade Pestalozzi do Brasil, com musicoterapia na Educação Especial e Gaby era musicoterapeuta da Associação Brasileira Beneficente de Reabilitação (ABBR), que se dedica, ainda hoje, à Reabilitação Neurológica. Vale dizer que Cecilia trabalhou com a Dra. Nise na área de Saúde Mental, o que fez com que as três formassem um grupo que as colocava num lugar muito especial pois representavam a musicoterapia utilizada nas então consideradas as três principais áreas de atuação. As três estavam, então, instrumentalizadas, fortalecidas e unidas em prol da Musicoterapia. Assim, essas três “mulheres guerreiras” se juntaram e, lideradas pela força e o desbravamento de Cecília, criaram o curso que foi no Brasil, o primeiro em nível de graduação, em 1972 – no Conservatório Brasileiro de Música!

Mas, é necessário fazer um “intermezzo” na história do curso porque cabe ressaltar que mesmo antes de a primeira turma terminar os seus estudos, Cecilia, com a força que sempre a impelia a ser desbravadora, e ainda capitaneando Doris e Gaby, organizaram no Rio de Janeiro, de 15 a 20 de julho de 1974, o 1º Encontro Brasileiro de Musicoterapia, no imponente Palácio Tiradentes, com a participação de convidados internacionais, com a colaboração de vários médicos, e, tendo, como convidado principal, o Dr. Andréas Rett, neurologista austríaco que classificou e nomeou a conhecida Síndrome de Rett e o Dr. Rolando Benenzon, psiquiatra argentino que grande contribuição deu à criação e desenvolvimento do curso, além de muitos outros médicos convidados. (Boletim de Musicoterapia n. 1, 1975). 

Cabe salientar que esse evento teve Cecilia como presidente, mas Doris e Gaby estavam sempre a seu lado! E, ainda se deve ressaltar que foi um grande sucesso. 

Mas, voltando ao Curso de Musicoterapia, deve-se observar que o mesmo foi criado, em 1972, para ter a duração de um ano. Entretanto, no final do primeiro ano a coordenação decidiu que o curso deveria ser concluído em três anos, o que fez com que houvesse muita desistência e que as mais de cem pessoas, agrupadas em quatro turmas (duas pela manhã, uma à tarde e uma à noite), se transformassem em duas turmas. E, ainda, mais uma modificação: no final do terceiro ano as coordenadoras decidiram que o curso deveria ter a duração de quatro anos. Observa-se que, mesmo com tantas modificações, 36 pessoas participaram da primeira turma até o final, sendo a formatura realizada na Escola Nacional de Música, hoje UFRJ (dezembro de 1975).  

Um mês depois da formatura, em janeiro de 1976, Cecília decidiu contratar as musicoterapeutas Lenita Moraes, Jeanette Elpern e eu, juntamente com o neurologista Dr. René Leibinger, para a coordenação do referido curso. Depois de alguns anos, passei a ser a única coordenadora, e nossa amizade se estreitou, na medida em que passamos a dar aulas fora do Rio, em vários lugares do Brasil, além de irmos a vários Congressos Mundiais, sempre acompanhando o movimento da musicoterapia. 

Cabe ressaltar que, em alguns desses congressos, ela exercia uma liderança entre os participantes da América Latina, como no Congresso da Espanha, em Vitória-Gasteiz, no Norte da Espanha (país Basco), onde, pela sua ascendência espanhola, sentiu-se em casa (1993)! Nesse evento, liderou um movimento para a criação do “Comitê Latino-americano de Musicoterapia”, sendo eleita a primeira “Secretária” do referido Comitê (denominação do líder desse Comitê).

Mas, considero que o ápice de sua liderança e força, que advinham de uma personalidade desafiadora, ficou mais evidente quando ela decidiu assumir a responsabilidade de realizar no Rio de Janeiro o VI Congresso Mundial de Musicoterapia, em 1990, encargo assumido por São Paulo, no V Congresso Mundial de Musicoterapia realizado em Gênova, em 1985. 

No entanto, diante das circunstâncias político/econômicas — a implantação do Plano Collor e o subsequente confisco de dinheiro – fomos convocadas para uma reunião em São Paulo, onde nos foi comunicado que diante das circunstâncias, a instituição que sediaria o referido congresso não poderia mais se responsabilizar por essa realização. 

Fomos então a São Paulo para “trazer” o referido evento para o Rio. E, deve-se reconhecer que esse Congresso, aqui realizado pela força e, principalmente, teimosia de Cecilia, aqui transformadas em qualidade, foi um “ponto de mutação” para a inserção do Brasil no mapa da musicoterapia mundial.

E, foi essa inserção que contribuiu para o desenvolvimento da musicoterapia que, de outra forma, só seria alcançada muito mais tarde!

Mas, sua força ainda continuou, sempre apoiando e, quando possível, participando dos eventos e Congressos Mundiais de Musicoterapia como na Alemanha (Hamburgo,1996) e nos Estados Unidos (Washington, 1999). 

Na verdade, a musicoterapia e os musicoterapeutas brasileiros têm muito mais a agradecer à Cecilia, sempre e, como por exemplo, pela sua implantação na Saúde Mental do Município. 

Obrigada, Cecilia, pela sua coragem… pela sua posição desafiadora… por ser desbravadora!!!!! A musicoterapia brasileira agradece… Nós agradecemos não só pela musicoterapia… mas, eu, em particular, pela sua força e amizade! 

 

Lia Rejane Mendes Barcellos

 Doutorado em Estruturação e Linguagem Musicais (Unirio, 2009). Mestrado em Musicologia (CBM, 1999). Formação no Bonny Method of Guided Imagery and Music. (Temple University, Prof. Dr. Kenneth Bruscia, (USA, 1995-1999). Graduação em Musicoterapia. (CBM, 1975). Especialização em Composição, Contraponto e Fuga (Academia de Música Lorenzo Fernândez, CBM, 1964); Especialização em Educação Musical (CBM, 1963); Graduação em Piano (Academia Lorenzo Fernândez, 1961). 

Referência

Boletim n. 1. Associação Brasileira de Musicoterapia (ABMT). Rio de Janeiro: maio, 1975. 

 

 

Vídeos

Ao Ritmo dos remédios Musicais – Musicoterapia

Cerimonia de encerramento do VI Congresso Mundial de Musicoterapia

Documentário sobre o VI Congresso Mundial de Musicoterapia

Homenagem a Cecilia Conde – I Encontro Internacional de Musicoterapia da UFRJ